segunda-feira, 17 de março de 2014

O Homem: da solidão original à consciência que o faz pessoa


não há nada mais ontológico ao homem do que esse buraco cavado no peito que, tantas vezes, parece emergir do mais profundo de nós, mostrando como que uma outra galáxia além.
Lugar de solidão profunda, de descontentamento sem motivo aparente, onde nenhum pode dizer que existe como se conhece.
Lugar onde às vezes parecem habitar os duplos ou triplos de nós (sem sê-lo).
Esse murro contra o peito exerce um peso na alma.

Por ser como que um fosso, o enchia de água, e aí ficava como criança na beira da praia a ver o mar chamar a si o que a ele lhe pertence. E esse fosso seco, sem utilidade e sem função, suga-nos de fora para dentro como um buraco negro.
Não há como fugir dele: é ontológico.
Até há pouco tempo não sabia como nomear este lugar.
Hoje, chamo-lhe solidão.
E descobri que este lugar existe em todos nós. Todos, os que partem em busca da definição de si mesmos, o encontram. Todos os que se encaixotam dentro de contentores pré-fabricados de existência o vivem. Todos nós. Como uma marca que caracteriza a nossa subjectividade.
Não há nada mais ontológico.

Minto, há outra coisa ainda mais ontológica em nós: a nossa vocação à comunhão.

Parece-me, no entanto, que muito precocemente se apressa o homem a alcançar a comunhão sem compreender a si mesmo, e não raras vezes se perde este homem em amontoados de gente.
Para se descobrir logo em seguida, e sempre, só. Profundamente, só.

Este sentido de solidão atravessa toda a nossa história. Não há grande religião que não fale dele, nem filosofia séria que não o estude.
E maravilho-me sempre que descubro um texto antigo que fale nele. Como se a consciência desta solidão fosse o primeiro exercício da auto-consciência humana. Quando primeiro a nossa matéria passou de viva a consciente, logo nos demos conta da nossa solidão. Como característica que nos separa do resto dos seres vivos (da animália) mas também, e principalmente, como contorno específico de cada ser humano. Sou só, não apenas porque me diferencio do resto do reino animal, mas também porque em mim faço uma experiência de solidão que me mantém só, mesmo quando diante de outro ser-humano. E é ainda mais surpreendente que esta auto-consciência seja prévia à consciência de comunhão.

Conhecer e compreender este lugar de solidão original é ao mesmo tempo um exercício de consciência pessoal do que em nós se faz pessoa. Nele se encontram a auto-consciência e a auto-determinação.
Porque o que cada um de nós faz com esta marca antropológica é determinante.

Encontro agora neste lugar não mais um buraco ou fosso que deva encher de água, mas uma terra que devo lavrar para nela semear (ou deixar que a semeie o Semeador).
Prepará-la com terra boa para que dê fruto bom.

E que fruto é esse?
Aquele que nos leva a compreender que não somos apenas animais racionais, mas seres auto-conscientes; que não somos apenas homens livres, mas pessoas auto-determinadas; que não nos resumimos a ser animais sociais, mas que atingimos a nossa plenitude quando somos dom para o outro; e que a virtude só existe realmente quando exercemos o nosso auto-domínio.

Hoje, parece-me assim de contemplar este lugar de solidão de onde partimos como dom para o outro.

O que mais me seduz no texto javista do relato do Génesis, é que o homem toma consciência da sua solidão depois de Deus o ter sentado do trono e de lhe ter confiado a tarefa de nomear toda a criação. Parece-me assim, que nem o poder, nem a glória de ser co-autor com o Absoluto preenchem o homem. Não é de estranhar? Se na nossa sociedade atual o que mais os homens ambicionam são o poder e a glória?
Não é de ficar perplexo ao  compreender que isto ao homem não o preenche?

Que ambicionar então? Se agora, como antes, o que mais desejamos é um coração feliz?
Seria de escutar este coração humano que bate há tanto tempo, e que há muito descobriu no outro (ser-humano) a sua primeira expressão de felicidade: "Tu és realmente carne da minha carne, ossos dos meus ossos".