domingo, 10 de maio de 2015

A ARTE permeada pelo AMOR revela a PESSOA (parte II)

Que Corpo?

Em todas as considerações que fizermos sobre o corpo humano, há, em primeiro lugar, que definir "corpo".
De que realidade falamos quando nos referimos a corpo no seu contexto humano?

Aqui, no alcance destas reflexões sobre a arte e o corpo, tenho por horizonte a mesma imagem que S. Paulo tinha diante do seu olhar em 1COR 12, 18-25 e em Ef. 5: o corpo humano como reflexo da pessoa em toda a sua verdade e dignidade, assim como a humanidade é corpo de Cristo, reflexo da Sua Pessoa em toda a Sua Verdade. E ainda lhe acrescenta o corpo humano como templo do Espírito.

Este é um horizonte dificílimo.
É mesmo seguro dizer que a nossa inteligência não o alcança.
Será preciso uma expansão da nossa capacidade de entendimento para ver esta realidade sobre o corpo com a mesma transparência e simplicidade com que S. Paulo a descreve.
Para o apóstolo parece óbvio; nítido; simples: tal como o nosso corpo tem muitos membros e todos eles manifestam a pessoa que somos; assim os homens redimidos em Cristo são membros do Seu Corpo.
Esta é, com certeza, uma afirmação apenas possível se iluminada pela fé.

Primeiro, não há nada de óbvio em dizermos que os membros do nosso corpo manifestam quem somos. Para aqui chegar, será necessário ao homem, navegar no seu próprio mar interior e aí questionar «Quem sou?»

Segundo, afirmar que a humanidade redimida é corpo do próprio Deus, através do qual Ele mesmo se manifesta e do qual Ele é a cabeça, é quase impensável.
Creio que diante disto muitos "rasgassem as vestes". Aos cristãos, pede S. Paulo, que "rasguem a mente e o coração". Não em sinal de ofensa, mas em sinal de novo e pleno acolhimento. Tal como Cristo rasgou o pano do templo.
Para aqui chegar, será necessário ao homem, quietar-se diante do céu e aí questionar «Quem somos?», deixando que o céu responda.

A vergonha e a inocência

O facto de, objectivamente, todos nós dedicarmos aos membros "menos decorosos"  do nosso corpo um cuidado especial - um certo pudor - parece significar que reconhecemos existir em nós uma marca de vergonha.
S. João Paulo II, nas catequeses sobre a Teologia do Corpo, estabelece um elo entre esta vergonha pessoal de cada homem e mulher e a marca da vergonha inscrita no coração humano em consequência do pecado original. São de grande beleza as catequeses que o Santo Padre dedica a este tema e a sua leitura torna-se indispensável para acompanhar as conclusões.
A vergonha, afirma S. João Paulo II, parece apontar para uma desunião no corpo - entre os seus membros - e entre o corpo e a alma.
De facto, o homem e a mulher dedicam a alguns membros do corpo um cuidado tão diferenciado que se torna natural perguntar porquê. S. João Paulo II coloca essa questão. E procura respondê-la, à luz da Palavra e da novidade revelada por Cristo.

A vergonha natural que sente todo o homem e mulher e que se manifesta no cuidado especial com o seu corpo - e em particular com alguns dos seus membros mais do que outros - é para S. João Paulo II reflexo da marca da vergonha inscrita em todo o coração humano em consequência do pecado original. Mas, esta vergonha não deve actuar no homem - varão e mulher - como força castradora ou limitadora, antes deverá abrir caminho ao nascimento do respeito pelo corpo, em compreensão da verdade que este representa. Se o homem - varão e mulher - não reconhecessem que os membros do seu próprio corpo revelam a pessoa que cada um deles é, e alguns desses membros mais que outros, o homem não necessitava ter esse cuidado, esse pudor. Temo-lo porque de facto ao mostrar essa parte física de nós, revelamos muito mais do íntimo que somos. E é precisamente na revelação desse íntimo que está a nossa vergonha. Não porque seja defeituoso o nosso ser; mas porque o olhar do outro o distorce e não nos vê tal como somos.

O amor restabelece a confiança. O amor entre os esposos cria aquele ambiente no qual o olhar não se turva. Por isso, no amor os esposos não sentem vergonha. 
Tal como não sentia vergonha o Homem da inocência original de que lemos em Gn. 2,25 «...estavam ambos nus e não sentiam vergonha...»
Esta expressão significa que no princípio o homem - varão e mulher - não sentiam vergonha diante um do outro porque não conheciam aquela desunião entre o seu corpo e a sua alma; entre o corpo e a alma do outro e, principalmente, entre o corpo do primeiro e a alma do segundo.

O Amor- o insuspeitável substrato da comunhão de pessoas

S. João Paulo II afirma que «à harmonia objectiva de que o Criador dotou os corpos (...) correspondia uma harmonia análoga no íntimo do Homem: a harmonia "do coração"». Esta harmonia entre o objectivo e o subjectivo do ser humano era permitida precisamente pela «pureza de coração».
E era esta «pureza de coração» que lhes permitia experienciarem, fisicamente, a força unitiva dos seus corpos que «era por assim dizer o "insuspeitável substrato" da sua união pessoal ou communio personanum».
Isto é, a pureza de coração que, no estado de inocência original, correspondia a uma perfeita harmonia entre o corpo - objectivo - e a alma - subjectivo - consentia ao homem e à mulher experimentarem na força unitiva dos seus corpos a plena comunhão de pessoas manifestada na plena comunhão de coração.
Nesse acontecimento eram os dois "uma só carne". Um só corpo. 

Sabendo que a pureza de coração é dom de Deus, esse "um só corpo" realizava-se não apenas de um com o outro, mas dos dois em uníssono com Deus Trino.
Nesse acontecer tudo no Homem - toda a sua humanidade manifestada da unidualidade da feminilidade e da masculinidade - era UM com o todo de Deus. Homem e mulher feitos UM com Deus-Pai, Filho e Espírito.

Este é o horizonte da fé cristã. A luz com que se ilumina o pensar do Homem a respeito de si mesmo e do outro semelhante a ele.
Chamo horizonte a esta conclusão porque ela é mais do que uma imagem.
Ela é, como o próprio horizonte, ampla, imensa. E deixa antever para lá dela uma outra verdade que às escuras vamos intuindo, mas que havemos de ver mais clara.

Se aceitarmos esta verdade sobre o homem e a mulher; sobre a sua união; sobre o que torna visível os seus corpos, estamos como o homem que contempla o céu estrelado.
Não pode este homem ao contemplar o céu imenso, todo estrelado, satisfazer-se com respostas pequenas. A evidente imensidão do céu o conduz na busca de respostas mais verdadeiras, que pareçam estar em justa medida com a plenitude que este homem tem diante do seu olhar. E mesmo para lá do que vê, sabe existir um tanto ainda maior de céu.

Sei que existe o que não vejo, porque a imensidão do que vejo me leva a concluir haver ainda muito mais para lá da finitude do meu olhar. 

Por isso, desafio a minha limitação e vou construindo lunetas e telescópios e radares e sensores e lasers e sigo atrás daquilo que há muito já me foi revelado pela intuição.
Da mesma forma, o Homem, cujo entendimento foi iluminado pela fé, não se satisfaz, nem se aceita com explicações pequenas de si mesmo. A evidente imensidão de quem é, o conduz na busca de respostas mais verdadeiras que o colocam diante da justa medida da plenitude que ele sente no seu coração.

De que forma, pode a arte colocar-nos diante da evidente imensidão do homem?

Se trespassada pela fé, a arte, ao representar a união dos corpos, manifestará o amor e a pureza apontado para a comunhão de pessoas. Ou representará a vergonha, colocando em relevo tudo o que à nossa volta distorce o nosso olhar, o nosso entendimento e o nosso coração.
E na sua objetiva busca pela verdade há-de conduzir-nos ao questionamento, forçando-nos a escolher caminhos, a defender a Verdade e a repudiar a mentira.